Balanço cinquentão

Di Melo, em seus métodos, diz: “calma!”. Nessa era regida pela pressa, o compositor pernambucano tem o tempo como aliado. Seu primeiro e homônimo álbum, de 1975, completa 50 anos em 2025 e cada vez mais cativa ouvintes mundo afora e Brasil adentro. Desde 2002, já ganhou oito reedições em CD e vinil. Uma cópia em bom estado do LP original pode ser negociada por um valor que gira em torno de R$ 2 mil ou R$ 3 mil. Não é para menos: o disco esbanja inspiração em 12 faixas que resultam em um repertório sem precedentes na espantosa discografia brasileira dos anos 70 e muito da originalidade se sustenta nos talentos de seu protagonista – a personalidade do timbre de voz, o balanço da mão direita ao violão e a originalidade da poesia que combina delírios filosóficos e crônicas da vida mundana.

Mas não é “só” isso. A criatividade que transborda do repertório de Di Melo atraiu para o seu entorno profissionais do primeiro time da música brasileira do período. Para começo de conversa, na ficha técnica consta nada menos do que dois dos instrumentistas mais cultuados do país, que juntos integraram o mítico Quarteto Novo: Hermeto Pascoal toca piano e flauta e Heraldo do Monte engrossa o suingue das cordas acústicas nos violões e violas. O time traz ainda Dirceu (bateria), Cláudio Bertrami (baixo), Bolão (saxofone), a cantora Eloá (coro), José Briamonte e Geraldo Vespar (arranjos). Essa constelação garante ao álbum uma estética alinhada com a cena de soul brasileiro que começava a se consolidar no período, mas com uma linguagem própria e também associada ao que se convencionou chamar de samba-rock.

Não por acaso, Jorge Ben foi um dos primeiros a sacar a qualidade da levada de Di Melo no violão. Durante uma turnê em Pernambuco, conheceu o músico e o indicou para o produtor Roberto Colossi. Mas foi outra recomendação peso pesado que abriu as portas para o artista gravar seu primeiro e, por décadas, único álbum. Ninguém menos que a cantora Alaíde Costa o apresentou para um produtor da Odeon, em um dos intervalos de uma de suas apresentações na lendária boate paulistana Jogral. Pronto: o pernambucano levou para o estúdio o repertório que tinha no baú, encontrou lá uma banda afiadíssima que potencializou seu groove e concluiu a gravação depois de apenas quatro impressionantes sessões.

Depois do lançamento, o artista se frustrou com o parco acerto financeiro relativo aos direitos autorais, comprou briga com a indústria fonográfica e sumiu. Literalmente. Passaram-se longos anos sem que se soubesse de seu paradeiro – o que alimentou, inclusive, um boato de que ele teria morrido em um acidente de moto. Nesse período, na verdade, Di Melo se envolveu com o mercado de artes plásticas e trabalhou como marchand. Seu ressurgimento aconteceu neste milênio e, calmamente, o músico se recolocou no meio musical em entrevistas para a imprensa, nos palcos e estúdios. Com seu humor peculiar, desdenhou da lenda em torno de sua morte e declarou-se “imorrível”. A força propulsora dessa gradual retomada é, sem dúvida, a potência do álbum de 1975 – que reúne oito composições autorais e quatro canções de outros autores.

Cinco décadas depois, as canções do álbum e a moral de seu autor estão no auge. Faixas como “Kilariô”, “A Vida em Seus Métodos Diz Calma”, “Pernalonga” e “Se o Mundo Acabasse em Mel” são clássicos das pistas de dança em todo o mundo. A primeira, inclusive, acaba de ser incluída na trilha sonora da série sobre o piloto Ayton Senna, da Netflix. Em 2023, ninguém menos que Drake sampleou Di Melo na faixa “Red Button”; a gravação escolhida foi “Papos Desconexos (PT. 1)”, que o pernambucano lançou em 2019 em parceria com a banda francesa Cotonete. “Pernalonga” também já foi “surrupiada” na faixa “The People Tree” do projeto N.A.S.A. (dos produtores Squeak E. Clean e DJ Zegon), com participações do cantor e compositor David Byrne (ex-Talking Heads), do DJ Z-Trip e dos rappers Chali 2Na (Jurassic 5) e The Gift of Gab (Blackalicious). “A Vida em Seus Métodos Diz Calma”, por sua vez, já foi incluída em uma coletânea da renomada gravadora de jazz Blue Note, em 1997. Já a capa do disco de 1975 aparece rapidamente no clipe da música “Don’t Stop the Party”, lançado em 2012 pela banda Black Eyed Peas.

Di Melo, portanto, está na ativa e aproveita essa guinada tardia para dar continuidade à discografia que se resumiu ao seu primeiro álbum por longas quatro décadas. Em 2016, lançou “Imorrível”; três anos depois, saiu o álbum “Atemporal”, com a Cotonete. Mais recentemente, em 2021, as oito faixas de sua autoria do repertório de 1975 ganharam regravações nas vozes de intérpretes como Dora Morelembaum, Josyara e Júlia Mestre no disco “Podível e Impodível”.

O momento, portanto, é mais do que propício para celebrar os 50 anos de sua obra-prima. O artista prepara um show comemorativo, com instrumentistas de bandas como Aláfia, Funmilayo Afrobeat Orquestra, Nômade Orquestra e Samuca e a Selva. A direção musical está sob responsabilidade de Décio 7, ex-baterista e um dos idealizadores da Bixiga 70, que trabalhou recentemente com João Donato.  Seus versos, agora, soam como proféticos (imorríveis, talvez): “a vida em seus métodos diz calma / vai com calma, você vai chegar / se existe desespero é contra calma / e sem ter calma nada você vai encontrar”. Com calma e sem desespero, Di Melo já chegou e vai além. Pode acreditar.

(Por Ramiro Zwetsch)

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